Em Caná, na Galileia, houve um casamento. Jesus e seus discípulos também foram convidados para o casamento. A dado momento a mãe de Jesus disse-lhe: “Eles não têm mais vinho”. Respondeu Jesus: “Que temos nós em comum, mulher? A minha hora ainda não chegou”. A mãe de Jesus disse aos serviçais: “Façam tudo o que ele lhes mandar”. Então Jesus disse aos serviçais: “Encham os potes com água e levem um pouco ao encarregado da festa”. O encarregado da festa provou a água que fora transformada em vinho, sem saber de onde este viera (…). – (Versículo que Jesus transforma água em vinho: João 2:1-11)
Crenças à parte, se Jesus conseguiu ou não transformar água em vinho não sei, mas que o Supremo Tribunal de Justiça conseguiu transformar € 971,07 em € 44.874,62, lá isso conseguiu.
Num recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.04.2024 (no processo n.º 3052/20.3T8STR.E1.S1), vem enriquecer-se a jurisprudência dos Tribunais superiores em matéria de responsabilidade civil contratual.
Adiantando já o caso concreto ali apreciado – para convidar o leitor a ficar e beber mais um pouco -, naquele processo analisou-se a avaria de uma determinada peça mecânica (um veio de um trator), que terá custado cerca de € 971,07. Com a avaria causaram-se estragos em outras partes do veículo, este esteve imobilizado para reparação por um determinado período e, a final, o proprietário recebeu uma indemnização total de € 44.874,62. Será milagre ou o Direito bem aplicado?
O caso concreto ali apreciado não tem um enquadramento no regime jurídico do Direito do Consumo pela circunstância de não estar em causa uma relação em que uma das partes é um consumidor e a outra um comerciante. Por esse motivo, a esta odisseia travada nos últimos quatro anos, foi aplicado o regime de venda de coisas defeituosas do Código Civil (artigo 913.º e seguintes) e ainda o regime geral da responsabilidade contratual, o que torna a decisão digna de partilha.
Apesar de não estar em causa uma relação de consumo, a interessante discussão que ali se travou e as suas conclusões têm a virtualidade de ser aplicáveis a situações que tenham na base ou não uma relação dessa natureza.
Tal acontece porque a decisão alcançada vem determinar que o comprador (seja numa relação de consumo ou não), tem o direito de ser indemnizado pelos danos que demonstre terem sido causados naquela venda de coisa defeituosa pela aplicação do regime geral da responsabilidade contratual. Na verdade, se estivéssemos numa relação de consumo (caso em que seria aplicável o DL n.º 84/2021, de 18 de outubro), ainda mais facilmente era alcançada aquela solução devido so desenho legal deste diploma e da proteções conferida ao consumidor.
Esta decisão tem ainda a virtualidade de alertar os menos atentos que não havendo obrigação de na generalidade dos contratos os redigir a escrito, numa era mais moderna que aquela outra da Galileia, as comunicações via Whatsapp servem para demonstrar os termos em que as partes se obrigaram.
Assim, pela leitura da decisão concluímos que foi através destas comunicações (aparentemente informais) que se concluiu pelas características do produto comprado e se este obedecia ou não ao pretendido pelo comprador, bem como os defeitos que veio a apresentar.
Dando agora uma breve nota sobre as questões jurídicas ali envoltas – que não dispensam uma leitura atenda do acórdão partilho no link infra -, o primeiro alerta que nos apraz ter presente é aquele que resulta do prazo de caducidade para o comprador da coisa defeituosa dar entrada da ação em Tribunal com vista anular o negócio por simples erro que, nos termos do artigo 917.º do Código Civil, é de 6 meses.
No caso concreto, a ação judicial deu entrada além dos 6 meses, o que, aparentemente, determinaria a sua extemporaneidade e, como tal, a procedência de uma exceção perentória por via da caducidade.
Porém, sendo esta a pedra de toque do acórdão, o Comprador não se limitou a pedir a anulação do negócio com fundamento na venda de coisa defeituosa, mas antes pediu também uma indemnização pelos danos provocados em resultado da avaria provocada pela coisa defeituosa e ainda pela privação de uso do trator, na decisão designados por danos colaterais.
Como facilmente se antevê, atento o prazo de caducidade dos 6 meses, foi votado ao insucesso a pretensão de o comprador se ver ressarcido da quantia de € 971,07 que pagou por uma peça mecânica defeituosa.
No entanto, sendo certo que a alegoria à transformação da água em vinho tinha apenas o propósito de embelezar a nossa exposição, a verdade é que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça em nada merece considerar-se um milagre quando não determina o reembolso dos € 971,07, mas vem atribuir uma indemnização quase 50 vezes superior, já que aplicou exemplarmente o Direito.
Assim, como naquela relação entre comprador e vendedor se demonstrou a venda de uma coisa defeituosa – o dito veio -, estando na presença de uma relação contratual, é este o regime legal aplicável e, como tal, beneficia o comprador (lesado) de um prazo (de prescrição e não de caducidade) de 20 anos para exigir do vendedor a correspondente indemnização pelos danos que aquela relação contratual lhe provocou (artigos 309.º e 798.º do Código Civil).
“Nestas situações, em que está em causa a reparação de outros danos que não os inerentes aos defeitos da coisa em si, ser-lhes-ão aplicáveis as regras gerais do direito de indemnização, ou seja, o prazo de prescrição geral.”
Acresce que a água deste processo só se transformou em vinho pela demonstração do nexo de causalidade entre a avaria do veio e os danos que essa avaria provocou no trator, assim como a sua consequente imobilização.
Pelo que, tal como se descreve na decisão “(…) o montante peticionado de € 19.750,22, a título de reparação do trator e o montante de € 25.124,40, a título de privação do uso do mesmo, enquanto se encontrava a ser reparado, ainda estão em prazo para serem reclamados, não lhes sendo aplicável os prazos de caducidade do art. 917.º do CPC”.
Pela experiência que tenho, nem sempre conseguimos elucidar os nossos clientes desta possível interpretação do Direito e da possibilidade de serem alcançados resultados como o que acaba de se expor. No entanto, por vezes, vale a pena.
Carlos Cartageno, Advogado
Este texto é meramente informativo, não constituindo aconselhamento jurídico.
Protegido por direitos de autor, da titularidade de Carlos Cartageno.